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A era do ninguém se importa

Um dos últimos deslizes motivados por IA generativa, a indicação de livros que não existem em um “suplemento especial” dos jornais estadunidenses Chicago Sun-Times e Philadelphia Inquirer, gerou mais uma onda de críticas à tecnologia.

Dan Sinker definiu o momento como a “era do ninguém se importa”:

O autor não estava nem aí. Os editores do suplemento não estavam nem aí. O pessoal dos negócios dos dois lados da venda do suplemento não estava nem aí. O pessoal da produção não estava nem aí. E o fato de ter levado *dois dias* para alguém descobrir essa cagada épica impressa significa que, no fim das contas, o leitor também não estava nem aí.

É tão emblemático do momento em que vivemos, a “era do ninguém se importa”, onde coisas completamente descartáveis são produzidas de qualquer jeito para as pessoas basicamente ignorarem.

Ele foca na IA, mas tenho comigo que o problema é mais profundo e anterior. Suplementos do tipo já existiam antes e, embora deslizes dessa natureza fossem raros, o fato deste ter levado dois dias para ser notado implica que do lado do leitor ninguém se importa, sim, e há muito tempo, muito antes da popularização da IA generativa.

Fico imaginando quanta coisa já não foi impressa para não ser lida ou, no máximo, ser lida e ignorada. Ou, no digital, quanta coisa não é publicada não para ser lida e gerar ações ou fazer pensar, mas para preencher espaço, ganhar a atenção para direcioná-la a anúncios ou coisas do tipo.

A “era do ninguém se importa” pode ser lida como a segunda fase da revolução das máquinas de conteúdo.

Rob Horning levantou esse argumento de modo mais completo e elegante, como lhe é costumeiro:

O fato de que os LLMs conseguem gerar quantidades infinitas de conteúdo explicitamente “falso”, com os vestígios de intenção e presença humanas profundamente diluídos através de inúmeras camadas de processamento e concatenação, poderia, espera-se, desmistificar não apenas aquela posição específica do sujeito que busca refúgio seguro em “textos reais” — ou seja, um álibi num “suplemento real” para os prazeres duvidosos que tais suplementos sempre proporcionaram —, mas também a fantasia de acessar a autenticidade perfeita através da mídia.

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12 comentários

  1. O artigo e todos os comentários do vídeo aqui é meio desanimador pra quem tem blogs pessoais. Ainda que seja uma prática de reflexão, você expõe seus gostos, cultura, e tudo mais que achar que vale a pena compartilhar. Mas me parece que o entendimento é que, na época que estamos, isso importa quase nada.

    Vide tiktok e ReelShorts (promessa da próxima febre entre os jovens), fora is reels e o shorts (separados)

  2. Fico dividido se peguei o jeito do estoicismo ou se é o início de uma depressão.

    Percebo muito isso do “ngm se importa” no ambiente acadêmico. Livros e livros para referenciar um trabalho e ngm, absolutamente ngm liga de ler.

  3. Eu fico meio boba em como há casos semelhantes a esse acontecendo há anos, e que mostram que o problema não é as pessoas não ligarem, é a falta de cultura (não achei palavra melhor) de quem está envolvido no processo e elas não se importarem com isso.

    Um exemplo (e tive que puxar pela memória, porque é um casos antigo e não achei referência a eles na web) é o de uma pintura exposta no Museu de Belas Artes no Rio que tinha, entre seus elementos, a impressão da palma de uma mão. Alguém foi lá e imprimiu uma segunda mão, e levou dias até alguém perceber.

    Outro: em 2016, dois estudantes largaram um abacaxi no meio da exposição “Look Again”, num museu escocês. Dois dias depois, o abacaxi foi movido para um case de vidro e passou a integrar a mostra.

    As pessoas não notam porque elas simplesmente não entendem. Acompanhei o último MetGala e todo mundo falando mal de uma modelo por causa do vestido “sem noção” – e era um que mais referências negras tinha. Há uns dez anos, uma repórter de cinema cobrindo Cannes falou mal de uma atriz com uma camiseta “nada a ver” que fazia “propaganda de um jornal” – era uma referência a Jean Seberg e sua famosa camiseta “Herald Tribune” no filme “À Bout de Souffle”, de 1960.

    Inserir dois livros inexistentes numa lista feita provavelmente por quem não faz ideia que livros e autores são aqueles é só mais um incidente de vários que vêm se acumulando há décadas – o mesmo tempo em que as pessoas não ligam e não se interessam em saber ou ligar.

    1. Acho que estamos na mesma página, Julia. Só discordo um pouco de colocar todos esses exemplos no mesmo balaio. “O que é arte?” (nos casos do abacaxi e da palma da mão) é uma pergunta subjetiva e a ausência de bagagem cultural para sacar referências se baseia em uma raiz comum, ainda que desconhecida de uma das partes. O erro do suplemento especial entra em uma categoria distinta, na minha visão. “Recomendamos livros que não existem” é uma falha bastante objetiva. No fim, porém, o fato de ter demorado dois dias após a publicação para alguém notar talvez caia no mesmo tipo de problema, né?

      1. O erro apontado quanto ao abacaxi não se refere a arte, e sim à curadoria, que não fazia ideia que peças estavam incluídas na mostra. Quem botou o abacaxi numa redoma não foram os visitantes e sim, quem trabalhava na montagem da exposição – do mesmo jeito que quem editou, diagramou e reproduziu a matéria sobre os livros não fazia ideia que dois deles sequer existiam.

      1. Rafael, acredito que a afirmação “apenas não percebemos por que somos muito jovens” é coerente, mas há mais além disto. Hoje, observo algumas situações com um viés crítico e analítico que, anos atrás, eu não tinha, pois me faltava experiência (na maior amplitude possível do termo). Aqui entra o que Ghedin mencionou sobre “subjetividade” e “ausência de bagagem cultural”. É importante destacar que essa ausência é específica de cada situação; é inegável que todas as pessoas têm uma bagagem cultural, mas cultura é diversa. Por exemplo, eu tenho quase zero conhecimento cultural sobre alta costura.

        Então, como você disse: “sempre foi assim”, mas não tínhamos as “condições necessárias e suficientes” (termo da minha área que eu amo) para perceber. Ter tais condições é um privilégio que a maior parte da população não possui, e isso também é um elemento cultural. A falta de compreensão e percepção crítica sobre elementos culturais é um aspecto de uma sociedade massificada e também esgotada, adoecida, explorada. Muitas vezes, não é apenas a falta de convicções que impede alguém de ser crítico em certas situações pois muita pessoas estão ocupadas em sobreviver em “colocar o pão na mesa”; outras em busca de enriquecer a todo custo; outras preocupadas em influenciar; outras em dominar e etc… Mais uma vez, “preocupar/importar” trata-se de um privilégio e em muitos casos, mesmo as pessoas que detém tal privilégio não se importam simplesmente por “será que importa?“.

        A questão é até que ponto essa falta de percepção pode ser vista apenas como “Beleza, isso acontece.” e em que momento isso se torna um elemento que merece preocupação. Não perceber que o abacaxi originalmente não fazia parte da exposição é aceitável, mas quando entramos na esfera de outros tópicos, como os mencionados nesta publicação, a situação se torna mais preocupante.

        1. Exato, muito bem colocado. Todo mundo sempre esteve mais preocupado com outras coisas mais relevantes para si mesmos. Eu sou alheio a muita fofoca que ocorre por aí (ainda bem).

          A maioria do conteúdo gerado, tanto por pessoas reais quanto AI, é unicamente pela audiência ($).

          Sabe o que ocorre com as pessoas depois de uma lista de livros, músicas ou filmes? Nada. Vida que segue. 15 minutos de fama, depois descanse em paz.

          Essa alienação é muito conveniente para manter o dinheiro fluindo e as mentes inertes.

          Podemos fazer algo a respeito? Somente ao que nós mesmos consumimos.

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