Como as tecnologias de conexão nos separam
O subtítulo de Superbloom, livro mais recente do escritor estadunidense Nicholas Carr, pode surpreender quem nunca parou para questionar ou mesmo observar os meios de comunicação: “Como as tecnologias de conexão nos separam.”
Soa contraditório, não? Sim, mas faz sentido. Com o texto delicioso que lhe é característico — e que, vez ou outra, nos é oferecido em sua newsletter —, Carr repassa a história das tecnologias de comunicação sob uma nova perspectiva, uma em que, por causa do desenvolvimento focado em eliminar atritos e acelerar a velocidade da informação, deteriora o corpo social.
Para o autor, embora a aceleração tenha se intensificado com o digital e a internet, o advento dessas tecnologias é parte de uma história bem mais antiga, iniciada com a escrita, momento em que a mensagem e o emissor se separaram pela primeira vez, tornando-a apta a ser transmitida por meios tecnológicos. Dali à hiper-realidade, ou o “metaverso” que deu certo, foi um pulo.
Quando chega nessa parte, ou seja, ao presente, Carr nos coloca diante de um cenário um tanto… desesperançoso.
Para ele, por exemplo, os esforços de moderação que as plataformas empregam são resultado de uma realidade em negação: a de que as pessoas, nós, somos atraídos por aquele conteúdo horrível tanto quanto pelo conteúdo “bom” que também viraliza. “Os algoritmos são hábeis em ler o id humano e satisfazer seus desejos, por mais bizarros que sejam”, escreve.
O argumento basilar de Superbloom é que comunicação rápida e ininterrupta não resulta necessariamente em mais socialização nem em relações mais saudáveis. Pior: o apelo do ecossistema fraturado criado pelas tecnologias de comunicação derivaria dos nossos desejos e instintos primitivos. É quase como se fôssemos cúmplices, e não somente vítimas, dos algoritmos de recomendação viciantes das big techs, que souberam “ler” esse ponto fraco da nossa constituição. Depois de fisgados por essa isca, é difícil voltar atrás:
E embora a afirmação de [Shoshana] Zuboff de que as redes sociais são manipuladoras seja difícil de contestar – os escritores dos algoritmos de feeds não são passam de “Maquiavéis” que usam código —, é importante sermos honestos com a nossa própria cumplicidade. Não estamos sendo manipulados para agir em oposição aos nossos desejos. Não somos reféns com síndrome de Estocolmo. Estamos recebendo o que queremos, em quantidades tão generosas que não podemos resistir a nos empanturrarmos. A manipulação é secundária e dependente do prazer.
Esse comportamento fomentado pelo ecossistema informacional contemporâneo, que pipoca novidades a todo momento, seria inerente a “mamíferos dotados de inteligência que anseiam por estimulação mental e socialmente obcecados que anseiam por conexão e status”. Nós. Foram esses instintos que nos levaram ao metaverso — não a versão fracassada de Zuckerberg, mas aquela em que, para Carr, já estamos mergulhados, o da hiper-realidade de Jean Baudrillard:
O computador é tão rápido para sentir e satisfazer nossos desejos que nunca nos permite a oportunidade de examinar nossos desejos, de nos perguntar se o que escolhemos, ou o que é escolhido para nós, é digno da escolha.
[…]
O mundo real não pode competir. Comparado ao deleite programado do virtual, parece maçante, lento e sem vida. Ao preencher cada momento com novidade e exagerar cada sensação psíquica, o hiperreal, como argumentou Baudrillard, passa a parecer mais real do que o real. “É o excesso de realidade que põe fim à realidade.”
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O “Superbloom” do título é um fenômeno natural que ocorre na Califórnia em que flores desabrocham em pleno deserto. Em 2019, virou febre no Instagram e converteu-se em #superbloom, um retrato e uma metáfora do perpétuo “superbloom” em que vivemos, não o das flores, mas o de mensagens:
Quando o superbloom vira #superbloom, a experiência muda. A representação da mídia se transforma em um ponto de encontro, um espaço comunitário ainda que totalmente virtual, e é isso que as pessoas enxergam e pelo que se sentem atraídas. À medida que mais pessoas se apegam à representação, sua força magnética se fortalece. Mais e mais pessoas são atraídas. A coisa real, o referente, desaparece; o tapete de papoulas é experimentado como uma imagem antes mesmo de ser fotografado. Para aqueles que chegaram a Walker Canyon com a intenção de se colocar no quadro do #superbloom, a realidade virtual já havia deslocado a realidade material. O cânion não existia exceto como conteúdo — conteúdo do qual eles queriam se tornar parte.
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Superbloom é a melhor articulação de várias das decepções que carrego com o digital e da angústia de sentir-se sozinho em um mundo que não para de falar. Mais importante, a faz de modo contundente, bem fundamentado e, a despeito dos prognósticos sombrios, livre do alarmismo que críticas do tipo costumam carregar. O que é um alívio porque, acho eu, já passamos (ou deveríamos ter passado) dessa fase.
O livro não tem tradução em português nem previsão de lançamento no Brasil.
Caramba, que conversa boa, pessoal! Como o Vitor mencionou, regulação pode ser uma das saídas para não nos ficarmos mais ainda, porque já estamos, somos vítimas e cúmplices também. Mas o ponto principal é a consciência. Como fulalas disse, quem cai em golpes e está em um relacionamento abusivo está vulnerável e não têm muitas vezes essa consciência de que está nesse cenário. Fico feliz que, em conversas como essa, estamos tomando consciência de que o vício em telas, nessa dopamina infelizmente tóxica, está nos consumindo, e até acabando com essa grande conquista da humanidade que é a capacidade de se comunicar, de saber ler (o ator de ler data 6 mil anos). Quando tivermos uma regulação, pode ser que as coisas não mudem tanto, mas já é um grande passo. Excelente reflexões!
Bom o debate e a crítica do fulalas aqui abaixo.
Vitimas ou cúmplices? Acho que a oposição não cabe. Somos vítimas e cúmplices. E isso não é contraditório se pensarmos na humanidade. Ora, foram seres humanos que desenharam esses sistemas.
Fora o problema das consequências não intencionais. Ópio alivia a dor, viabiliza cirurgias. Mas é incrivelmente viciante. Talvez o primeiro a descobrir os efeitos da planta em humanos estivesse com boas intenções.
Vejo essa transição no google. Pode ser inocência minha, mas acho honestamente que eles queriam contribuir. Mas depois descobriram que vender drogas da mais dinheiro.
A diferença entre o veneno e o remédio muitas vezes é a dose. E só uma boa regulação impede a indústria farmacêutica de vender veneno. O setor tec precisa ser regulado.
Nicholas Carr é dos grandes mesmo! O tema merece todo o destaque, pois os danos provocados por essas tecnologias atingem todos nós, afetando a dinâmica social e pessoal de maneira profunda.
Tenho uma certa resistência, no entanto, de aceitar esse argumento de que somos, como usuários, coniventes com o que está acontecendo — a tal síndrome de Estocolmo. Uma pessoa que cai num golpe é conivente? Uma pessoa viciada em drogas pesadas é conivente? Uma pessoa que se vê numa relação abusiva é conivente? E por que regular conteúdo de mídia se cada um sabe de si e consome o que quer? Ora, é evidente que o ser humano tem suas fraquezas e vulnerabilidades, mas nem por isso estamos de acordo com qualquer tipo de aproveitamento nesse sentido. Quando pensamos em crianças fica mais fácil compreender. Um adulto é como uma criança em vários aspectos: permeado de fraquezas e vulnerabilidades, porém iludido de que já desvendou tudo que importa.
Eu acho que muitas vezes nesse debate se esquece que o cenário atual tem intenção; não é um mero acidente ou moda. É um projeto arquitetado, com cifras inimagináveis sendo injetadas diariamente. Por isso acredito que é superficial (talvez ingênua) uma análise minimamente séria sobre esse tema (dos danos provocados pelas tecnologias atuais) e que não leva em conta o sistema que nos trouxe até aqui.
No mais, o artigo que escrevi no final do ano passado curiosamente já tratava várias dessas abordagens no livro do Carr que você citou, inclusive de maneira semelhante:
E com relação à solidão que você mencionou, há uma boa parte dedicada a isso também. Eis um trecho:
É um bom questionamento, fulalas! Fazendo o advogado do diabo (ou do Carr), fico meio que em cima do muro em relação à visão dele e a sua, porque a sua implica em uma espécie de condescendência (que critico no final do meu texto) com as pessoas, que “não sabe o que querem”. Telas são um vício? Sim, podem ser. Como com qualquer vício, o primeiro passo para superá-lo é reconhecer o problema, e acho que pouca gente está disposta a isso. Agora fazendo o seu advogado (😁), talvez o problema seja tão grave que passa despercebido, algo como dado/natural, tal qual o capitalismo.
Mas as pessoas estão ficando cada vez mais cientes do que se passa, sim. Novamente, menciono isso no meu texto:
O diabo é que a tecnologia está num estágio tão refinado que se torna irresistível. Não vejo outra forma de conter isso que não seja regulando, tal como fizemos com o tabaco e o CFC (gás prejudicial à camada de ozônio). É uma luta onde o indivíduo não tem qualquer chance de vencer, nem mesmo de escapar ileso, pois o desequilíbrio de forças é descomunal.
Fulalas, nesse caso eu acho que é válido pensarmos onde o tipo de abordagem do Nicholas Carr se encaixa mais. Eu concordo demais com a sua visão, mas ela pressupõe (ao menos na minha interpretação) uma crítica com viés mais político dos efeitos da tecnologia, no sentido de enxergarmos a necessidade de regulação e também de identificarmos essa relação desigual do indivíduo versus corporações poderosíssimas. Não é que o autor não aborde esses temas em seus textos e livros, mas entendo que o foco do Nicholas Carr é mais uma crítica fenomenológica da tecnologia, pesquisando a maneira como as ferramentas que as pessoas usam moldam sua experiência real de vida, comportamentos, percepções, pensamentos, suas relações com os outros e com o mundo. E mesmo dentro dessa abordagem o autor reconhece a enorme dificuldade, inclusive ele mesmo afirma que sofre nessa luta, justamente porque esse briga é desigual. Mas numa abordagem fenomenológica, existem nuances que são só nossas, e nesse sentido Carr faz questão de evidencia-las. Colocando elas na mesa. Mas é isso, a verdade é que esse debate deve ser plural, abrangendo aspectos fenomenológicos e também políticos, caso contrário ficaremos refém de qualquer modo.
Tem um livro que eu recomendo muito e conversa bastante com o seu comentário “Dopamina: a molécula do desejo”. Tem um capítulo sobre vício que o autor dá exemplos e cita as redes sociais como dopamina rápida e barata.
Eu particularmente acho muito difícil escapar desse ciclo, principalmente sem regulação das plataformas.
Estudar sobre o nosso cérebro e entender como as redes sociais afetam o nosso comportamento nos torna mais conscientes, porém mesmo o nosso autocontrole é um músculo limitado.
“A dopamina nos faz desejar sempre mais. A vida, porém, é mais do que ambição e busca insaciável.”
Enfim, encontrar o equilíbrio é o maior desafio da nossa sociedade atual.
Eu vivo com essa sensação de que o WhatsApp só piorou nossa comunicação com pessoas queridas. Tenho irmãos que não conseguem se entender porque é tudo dito no WhatsApp. Obrigado pela indicação!
Muito interessante essa perspectiva de não sermos apenas vítimas, mas cúmplices. E penso que até produtores da nossa própria desconexão. À moda de Freud, se sabemos muito pouco sobre nós mesmos, acho que os algoritmos passam a saber mais do que nós, acessando as profundezas dos desejos e nos entregando o que resistimos em admitir que desejamos. O negócio é complicado. Um abraço