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Votando com a carteira

por Cory Doctorow

Nota do editor: Este texto do Cory Doctorow, inventor do termo “enshittification”, foi um lembrete para mim, uma valiosa ajuda para (re)colocar as coisas em perspectiva. Espero que esta tradução também ajude a iluminar as suas reflexões e práticas.


Você não pode “votar com a carteira”. Ou melhor: pode, mas você perde esse voto. Votos com a carteira sempre vão para quem tem a carteira mais gorda, e estatisticamente esse não é você.

Margaret Thatcher tentou nos convencer de que “não existe algo chamado sociedade”. Ela queria que as pessoas comuns abandonassem a ideia de um destino compartilhado, que deixassem de lado qualquer noção de solidariedade como resposta aos problemas sociais. Apesar de os próprios apoiadores de Thatcher formarem cartéis e cabalas — da Mount Pelerin Society à Heritage Foundation —, ela insistia que pessoas comuns deveriam lutar sozinhas.

Se você quer salários melhores, não se filie a um sindicato — apenas peça um aumento ao seu patrão. Se você quer aluguéis mais baixos, não exija controle de aluguéis — peça um desconto ao proprietário do imóvel. Se nada disso funcionar (e raramente funciona), azar o seu. “O mercado” existe para fazer “descoberta de preços” e você descobriu o preço do seu trabalho (menos do que precisa para sobreviver) e o custo da sua casa (mais do que pode pagar). Você votou com a carteira — e perdeu. Como Thatcher gostava de dizer, “não há alternativa.”

Esse tem sido nosso quadro de mudança nos últimos 50 anos. É como se tivéssemos sofrido uma lobotomia coletiva e esquecido como mudanças reais acontecem. Mudança acontece quando grupos solidários de pessoas comuns — sindicatos, movimentos políticos — confrontam políticos e detentores de poder e exigem mudanças. Seu chefe não vai dividir de forma justa os frutos do seu trabalho a menos que tema que todos os trabalhadores chão de fábrica fechem o negócio. Seus políticos não vão atender aos pedidos das pessoas comuns — que não podem enchê-los de dinheiro — a menos que temam ter seus gabinetes bloqueados, piquetes em frente às suas casas e seus cargos contestados nas eleições.

Em vez de exigir esse tipo de mudança, devemos “votar com a carteira”, transformando nossas escolhas de consumo pessoais em fetiche e tratando os outros de “preguiçosos” ou “mesquinhos” se não saírem do Facebook ou pararem de comprar na Amazon. Isso não é só ineficaz, é contraproducente. Recusar-se a formar laços de solidariedade com pessoas que sofrem do mesmo modo que você porque compram coisas que você desaprova significa que você abre mão da solidariedade necessária para alcançar a mudança real que busca.

Comprar melhor não salva o planeta nem seus vizinhos. Ações individuais não provocam mudança sistêmica. Para isso, precisamos de ação coletiva.

E também faça escolhas de consumo que melhorem sua vida e a das pessoas que você ama. Apoie a livraria do seu bairro, compre online no libro.fm e bookshop.org — não porque isso vá quebrar o monopólio da Amazon (para isso precisamos de sindicalização, leis antitruste e cobrança de impostos), mas porque quando você compra nessas lojas você faz diferença na vida das pessoas que as mantêm, que pagam salários decentes e não abusam de trabalhadores em centros de distribuição.

Vá à mercearia familiar do seu bairro em vez do monopolista que quebra sindicatos, porque são gente boa, a comida é boa e eles investem na comunidade, em vez de drenar seus recursos e pedir isenções fiscais.

Compre de artistas e criadores que você gosta — apoie suas campanhas de financiamento coletivo e Patreons, compre música no Bandcamp — não porque isso vá destruir a hegemonia das cinco grandes editoras, quatro grandes estúdios, três grandes gravadoras, duas grandes empresas de apps e uma grande loja de ebooks/audiobooks — mas porque vai ajudar as pessoas cujo trabalho artístico você aprecia a pagar o aluguel e comprar mantimentos.

Saia do Facebook, Instagram e Twitter e entre no Mastodon e/ou Bluesky — não porque você vá “desbostificar” a internet mudando para redes federadas, mas porque você, pessoalmente, pode ter uma experiência menos ruim se se afastar da economia podre zuckermuskiana.

Faça tudo isso — na medida do possível. Apoie a livraria local, mas não deixe de comprar e ler os livros que você ama só porque a loja fica a duas horas de distância e você só vai lá uma vez por mês. Apoie o verdureiro local, mas se ele não tiver os ingredientes que você precisa para um jantar especial para seus amigos ou filhos, vá ao supermercado ou hipermercado. Compre a arte de artistas quando puder, mas se há um filme que você quer ver e só está disponível no Prime ou no YouTube, pague o aluguel ou um mês de streaming. Tenha conta no Mastodon ou Bluesky, mas se seus amigos, clientes ou público não migrarem com você, encontre-os onde eles estão.

Acima de tudo, não se isole. Como Zephyr Teachout escreve em Break ‘em up, se você perde o protesto no centro de distribuição da Amazon porque passou horas dirigindo atrás de uma papelaria independente para comprar marcadores e papelão para um cartaz, Jeff Bezos vence.

Tenha com os seus camaradas uma postura graciosa. Não chame alguém de “traidor” só porque comprou um McDonald’s para os filhos depois de um longo dia de trabalho. Não torça o nariz para quem comprou uma camiseta na Zara. Tenha compaixão por si mesmo. O dano que você faz à luta por ir para casa de avião em um feriado prolongado, usar um canudo plástico ou software proprietário é infinitesimal. E se você está conectado à família, bem hidratado e com suas necessidades de tecnologia atendidas, terá mais energia e recursos para engajar na luta por mudança sistêmica.

Faça escolhas individuais que melhorem sua vida. Participe de ações coletivas para melhorar a sociedade. Sua ansiedade pessoal sobre comprar orgânicos ou tomar um frappuccino apenas te deixa menos eficaz. Não é boicote. Um boicote é planejado, social e solidário. É algo que muitas pessoas fazem juntas. Boicotes funcionam (por isso genocidas detestam o movimento BDS). Traição não é comprar de alguém antiético. Traição é ser fura-greve ou quebrar um boicote.

O truque grosseiro de Margaret Thatcher — “não existe essa coisa de sociedade” — engana cada vez menos pessoas. Fazer a coisa certa não é questão de ortodoxia pessoal — é questão de tática de movimento. Não vamos curar a bostificação buscando obsessivamente uma lista aprovada de comerciantes e produtos corretos — faremos isso mudando o panorama político para que os “bostificados” afundem e os que “desbostificam” subam:

https://pluralistic.net/2025/07/31/unsatisfying-answers/#systemic-problems

Se você acha que comprar algo diferente ou comprar em outro lugar vai melhorar a vida dos seus camaradas, então, sim, passe a dica! Mas não os critique por comprar “errado”. A melhor razão para sugerir uma escolha de consumo é melhorar a vida de alguém de quem você gosta.

E a propósito: este é meu último post no blog antes do encerramento do meu Kickstarter para a pré-venda do audiolivro, livro digital e impresso, Enshittification. Não tenho Patreon, não coloco paywall no meu trabalho nem vendo anúncios. Sustento minha família vendendo livros, e o Kickstarter é a forma que mais me ajuda — eu recebo mais por livro e isso ajuda os livros a entrarem nas listas de mais vendidos:

https://www.kickstarter.com/projects/doctorow/enshittification-the-drm-free-audiobook

Adoraria que você considerasse apoiar a campanha. Mas também: não se preocupe se essa não for a forma mais fácil para você ler meu trabalho. Se está sem grana, não pode usar o Kickstarter, ou prefere a biblioteca, pegue os livros de outro jeito. Tudo bem. Suas escolhas individuais de consumo podem fazer diferença para mim, pessoalmente; mas a maneira de mudarmos a sociedade é aderindo e participando de um movimento. Eu prefiro muito mais viver num mundo melhor do que viver neste com US$ 20 ou US$ 30 a mais na minha conta.

Publicado originalmente no Pluralistic em 13/9/2025.

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16 comentários

  1. Ótima reflexão. Por mais breve que seja, me ajudou a parar um minuto e colocar as coisas em melhor perspectiva. Me veio à mente muitos momentos recentes lendo o X e vendo essa culpabilização alheia entre as pessoas por conta do seu consumo de artistas musicais X ou Y. Sério mesmo que o problema do protesto lá no Rio contra essas duas PECs horríveis é porque o Caetano Veloso vai participar e por isso você não vai mais? Sério mesmo que uma pessoa não pode criticar o envolvimento do Jay-Z e da Beyoncé com Ivanka Trump e Jared Kushner num jantar de elite só por que ela ouve Taylor Swift em casa? Tudo isso no fim do dia realmente contraprodutivo e quem quer se manter no topo continua se beneficiando dessa desunião de quem já está embaixo.

  2. muito obrigada pela tradução e a publicação por aqui.
    hoje eu me vejo em um momento curioso. passei a adolescência/início da juventude mergulhada em política e fazendo partes de movimentos de direita, e já concordei muito com essa frase da thatcher. hoje, um pouco mais adulta (rs) percebo que certas coisas que aprendi na época trouxeram um peso muito grande pra mim. até na forma em que eu me enxergo, e enxergo os outros. é até meio bobo admitir isso mas eu tive que reaprender a me acolher e também acolher aos outros porque antes tudo era resumido em “trabalhe, só foque no seu, cale a boca e o resto é mimimi”. e esse papo de “você pode combinar o que você quer com seu patrão” era tão comum de ouvir, e hoje eu acho uma esquizofrenia.

    hoje consigo ver que o buraco é mais embaixo. e que não dá pra se isolar. nem aqueles que pregam a individualidade extrema conseguem. vivem em bandos. enfim, o comentário virou um desabafo pessoal, mas é que esse texto foi uma reflexão muito boa pra mim (e talvez um pouco ingênua porque hoje eu vivo com menos otimismo em geral), que me encontro nessa fase em que matei meus ídolos, tô me abrindo pro resto e tentando não me isolar.

    valeu!

  3. O texto e a sua ideia, merecem todos os elogios. Que leitura boa.
    Outro ponto que me peguei refletindo ao terminar a leitura e clicar no link: Ainda existe uma internet viva.

  4. Eu adoro pesquisar aplicativos que respeitam a privacidade, encontrar apps open source que fazem algo tão bem quanto um proprietário, para mim virou um hobby, mas se não encontrar ou entender que o proprietário é melhor, tudo bem, não vou morrer por isso, tanto é que uso o Google Maps e One UI até hoje.

  5. excelente texto e grande reflexão.
    o problema é que é difícil “apoiar a livraria e o comerciante local” quando o mesmíssimo produto (livro ou coca-cola) é 50% mais caro comprando localmente e ainda tem que ir lá buscar, quando os grandes entregam na sua porta por preço muito mais baixo.
    se falar de produtos duráveis então, aí fica até bizarro porque o local muitas vezes nem tem o produto.

  6. Prompt:
    Leia atentamente o texto abaixo e apresente contrapontos claros e bem fundamentados. Questione as premissas, a lógica, as generalizações e as possíveis omissões. Aponte perspectivas alternativas, fragilidades argumentativas e exemplos que possam relativizar ou contrariar o ponto de vista apresentado. Evite apenas repetir opiniões: use raciocínio crítico, histórico, social, filosófico ou científico quando pertinente. Eis o texto: [cole aqui o texto]

  7. Votar com a carteira não escala quando monopólios derrubam o comerciante local com as estratégias mais predatórias possíveis, ainda mais em um país onde 40% sobrevive com 600 reais por mês

  8. Excelente reflexão, necessária na verdade.
    Estou nessa onda de fortalecer o coletivo e abandonar as soluções enlatadas(big techs principalmente). Nem sempre consigo, ainda compro/consumo algo delas, mas sou muito mais seletivo hoje em dia.
    Parabéns pelo trabalho!

  9. Fã de carteirinha do Cory Doctorow a mais de 20 anos. O cara, além de ter uma visão ímpar, não só expõe os problemas, mas oferece soluções, ainda que não as necessárias, mas pelo menos as possíveis, para os problemsa que o norte-americano médio muitas vezes evitam querer olhar, porque se parasse e olhasse, pega o primeiro barco para Cuba ou o primeiro barril para o Canadá.
    Ah, e os livros do Cory são uma obra à parte, seja na parte de ficção como não-ficção. Vale a pena ler.

  10. Senti um grande déjà vu lendo esse texto, daí lembrei que o próprio Ghedin publicou um texto sobre um tema bem similar (sobre boicote ser uma forma de protest0): https://manualdousuario.net/boicote-forma-protesto/

    Vendo os comentários, recordei que o mesmo Cory Doctorow escreveu outro post falando sobre “votar com a carteira”, onde ele diz:

    Queremos poder votar com nossas carteiras, porque é muito mais rápido e conveniente do que votar com nossas cédulas. Mas a eleição de votos-com-sua-carteira é manipulada para as pessoas com as carteiras mais gordas. Tente o mais duro que você gostaria, você simplesmente não pode comprar o seu caminho para fora de um monopólio – que é como tentar reciclar o seu caminho para fora da emergência climática. Problemas sistêmicos precisam de soluções sistêmicas – não individuais.

  11. A grande “carteira” que temos é a importância das escolhas e a consciência de que estamos em um momento em que muitas coisas não têm muito jeito de mudá-las imediatamente, mas vamos aos poucos.
    Compro produtos no bairro onde moro, mas não deixo de, por exemplo, ir ao cinema no centro da cidade ou em livrarias “chiques”. Não uso as redes do “zuck”, uso o Mastodon e a Bluesky, mas estou em outras também tóxicas, fazendo o possível para “desviar” dessa toxicidade.
    E assim vamos, fazendo nossa revolução particular, junto ao coletivo.
    O mundo muda quando a gente muda. E vamos mudando, conforme nossas possibilidades.
    Este texto e a partilha dele aqui já é um bom exemplo!
    Obrigada por isso, Rodrigo!

  12. Fico impressionado com a simplicidade com que o Cory coloca suas ideias, reflete assuntos cheios de camadas, e a constância do seu trabalho. E admiro o Ghedin pelos mesmos motivos. Obrigado por trazer esse texto pra essa comunidade Manual. Li durante meu café da manhã antes de sair pro trabalho e sem dúvidas esse texto ficará comigo ao longo do dia.

    1. Pensando aqui que nesse texto Cory incentiva a resistência às Big Techs ao mesmo tempo que consola e re-incentiva quando bate aquele sentimento de desistência que vem de vez em quando, quando parece que não adianta resistir.

      Fiquei pensando também em como fomos/somos lobotomizados a reverenciar tudo o que é GIGANTE, “a maior empresa”, “os mais vendidos”, “o melhor jogador”, “o melhor funcionário “, “a maior banda”, o capitalismo cria seus Santos com números (de lucro, de alcance, de fãs…) e as pessoas ficam igual panacas acreditando nessas crenças sem questionar. A maior seita de todas é essa (atinge todas as classes sociais) pois as pessoas fazem parte dela automaticamente, enquanto acham que têm autonomia e liberdade de escolha mas na verdade são apenas rebanho.

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